O que está
acontecendo conosco? Como chegamos a este ponto? Como
pretendemos ser uma nação digna desse nome se todo mundo parece fazer questão
absoluta de deixar de cumprir a lei? Ou, pelo menos, é capaz de qualquer
esperteza e malabarismo moral para garantir que ela não se aplique no seu caso.
Até mesmo os legisladores, que fazem as leis, não demonstram o menor respeito
por elas. E os que ocupam o Executivo e deveriam executá-las, depois de
manobras, jeitinhos e pedaladas de todo tipo para se livrar dessa obrigação,
ainda posam de vítimas e jogam a culpa nos outros. Sem esquecer que abusam de
uma pretensa criatividade que não engana ninguém, ao buscarem anistias de todo
tipo que anulem seus delitos no caso de serem descobertos.
Esse
comportamento de vitimização associada à culpabilização alheia é parte integral
da maneira como funciona o mecanismo perverso. Começa pela negação da
realidade, tão conhecida e já estudada desde Freud. O sujeito se recusa a tomar
conhecimento dos fatos reais, substituindo-os por falsidades e versões
deturpadas, agora chamadas de fatos alternativos, pós-verdades,
contranarrativas. Em seguida, na construção de um relato imaginário de martírio
ou heroísmo, cultiva a disseminação de ressentimentos que espalhem e propiciem
atitudes coletivas de cobrança e revanche, hostilidade e agressão difusa e
indiscriminada dirigida contra todo e qualquer cidadão passível de não ser mais
visto como próximo, compatriota ou merecedor de respeito, solidariedade ou
compreensão — e então passa a conveniente alvo de agressão e justiçamento.
[...].
Aliás, ninguém se sente responsável por nada. A ciclovia que desabou com a primeira onda mais forte e matou pessoas cai no mesmo poço de irresponsabilidade que a barragem que estourou, matou gente e animais, arrasou com todo um ecossistema e a economia de uma região. Os salários de funcionários que atrasam, os reajustes negados, as verbas que deixam de chegar para educação, saúde, saneamento, segurança pública e outros serviços essenciais, tudo isso é visto como se não tivesse relação alguma com o descumprimento das leis — tenha sido por meio de fraudes, compadrio, corrupção de todo tipo ou irresponsabilidade fiscal.
A lei é dura, mas é a lei, garante o sábio princípio que sustenta o convívio social. O que está acontecendo conosco, que assistimos boquiabertos a tudo isso mas nos anestesiamos a ponto de deixar escalar assim?... Até quando? O que achamos que estamos construindo para o futuro? Em que isso tudo vai dar? - Ana Maria Machado/O Globo – Enviado por Cacau Quil – Leia na íntegra
Nenhum comentário:
Postar um comentário