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terça-feira, 25 de abril de 2017

“Independência judicial e abuso de autoridade” por Sergio Moro

As Cortes de Justiça precisam ser independentes. Necessário assegurar que os julgamentos estejam vinculados apenas às leis e às provas e que sejam insensíveis a interesses especiais ou à influência dos poderosos. A independência dos juízes tem uma longa história. Na Idade Média, os juízes do rei se impuseram, inicialmente, às Cortes locais, estas mais suscetíveis às influências indevidas nos julgamentos. Sucessivamente, os juízes se tornaram independentes do próprio rei e, posteriormente, daqueles que o substituíram no exercício do poder central, o executivo ou o parlamento. [...]. No Brasil, a independência das Cortes de Justiça é resultado de uma longa construção, trabalho não de um, mas de muitos. Seria, porém, injustiça não reconhecer a importância singular de Rui Barbosa nessa construção.

Rui Barbosa é um dos pais fundadores da República. Foi o maior jurista e o mais importante advogado brasileiro... Rui Barbosa assumiu a defesa, no final do século XIX, do juiz Alcides de Mendonça Lima, do Rio Grande do Sul. O juiz, ao presidir julgamento pelo júri, recusou-se a aplicar lei estadual que eliminava o voto secreto dos jurados, colocando estes a mercê das pressões políticas locais.

O então presidente do Rio Grande do Sul, Júlio de Castilhos, contrariado, solicitou que fosse apurada a responsabilidade do “juiz delinquente e faccioso”. O tribunal gaúcho culminou por condená-lo por crime de abuso de autoridade.

Rui Barbosa levou o caso até o Supremo Tribunal Federal, através da Revisão Criminal nº 215. Produziu, então, um dos escritos mais célebres do Direito brasileiro, “O Jury e a responsabilidade penal dos juízes”, no qual defendeu a independência dos jurados e dos juízes. Argumentou que um juiz não poderia ser punido por adotar uma interpretação da lei segundo a sua livre consciência. Com a sua insuperável retórica, afirmou que a criminalização da interpretação do Direito, o assim chamado crime de hermenêutica, “fará da toga a mais humilde das profissões servis”. Argumentou que submeter o julgador à sanção criminal por conta de suas interpretações representaria a sua submissão “aos interesses dos poderosos” e substituiria “a consciência pessoal do magistrado, base de toda a confiança na judicatura”, pelo temor que “dissolve o homem em escravo”. Ressaltou que não fazia defesa unicamente do juiz processado, mas da própria independência da magistratura, “alma e nervo da Liberdade”.

O Supremo Tribunal Federal acolheu o recurso e reformou a condenação, isso ainda nos primórdios da República, no distante ano de 1897. Desde então sepultada entre nós a criminalização da hermenêutica, passo fundamental na construção de um Judiciário independente.

Passado mais de um século, o Senado Federal debruça-se sobre projeto de lei que, a pretexto de regular o crime de abuso de autoridade, contém dispositivos que, se aprovados, terão o efeito prático de criminalizar a interpretação da lei e intimidar a atuação independente dos juízes.

Causa certa surpresa o momento da deliberação, quando da divulgação de diversos escândalos de corrupção envolvendo elevadas autoridades políticas e, portanto, oportunidade na qual nunca se fez mais necessária a independência da magistratura, para que esta, baseada apenas na lei e nas provas, possa determinar, de maneira independente e sem a pressão decorrente de interesses especiais, as responsabilidades dos envolvidos, separando os culpados dos inocentes.

Ninguém é favorável ao abuso de autoridade. Mas é necessário que a lei contenha salvaguardas expressas para prevenir a punição do juiz — e igualmente de outros agentes envolvidos na aplicação da lei, policiais e promotores — pelo simples fato de agir contrariamente aos interesses dos poderosos.

A redação atual do projeto, de autoria do senador Roberto Requião e que tem o apoio do senador Renan Calheiros, não contém salvaguardas suficientes. Afirma, por exemplo, que a interpretação não constituirá crime se for “razoável”, mas ignora que a condição deixará o juiz submetido às incertezas do processo e às influências dos poderosos na definição do que vem a ser uma interpretação razoável. Direito, afinal, não admite certezas matemáticas. [...].

Espera-se que uma herança de séculos, a construção da independência das Cortes de Justiça, não seja desprezada por nossos representantes eleitos. Compreende-se a angústia do momento com a divulgação de tantos casos de corrupção. Mas deve-se confiar na atuação da Justiça, com todas as suas instâncias, para realizar a devida depuração. Qualquer condenação criminal depende de prova acima de qualquer dúvida razoável. A aprovação de lei que, sem salvaguardas, terá o efeito prático de criminalizar a hermenêutica e de intimidar juízes em nada melhorará a atuação da Justiça nessa tarefa. Apenas a tornará mais suscetível a interesses especiais e que, por serem momentâneos, são volúveis, já que - e este é um alerta importante - os poderosos de hoje não necessariamente serão os de amanhã.


Rui Barbosa também foi Senador da República. É o seu busto que domina o Plenário do Senado. Espera-se que a sua atuação como um dos fundadores da República e em prol da independência da magistratura inspire nossos representantes eleitos – Leia na íntegra

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