As Cortes de
Justiça precisam ser independentes. Necessário
assegurar que os julgamentos estejam vinculados apenas às leis e às provas e
que sejam insensíveis a interesses especiais ou à influência dos poderosos. A
independência dos juízes tem uma longa história. Na Idade Média, os juízes do
rei se impuseram, inicialmente, às Cortes locais, estas mais suscetíveis às
influências indevidas nos julgamentos. Sucessivamente, os juízes se tornaram
independentes do próprio rei e, posteriormente, daqueles que o substituíram no
exercício do poder central, o executivo ou o parlamento. [...]. No Brasil, a
independência das Cortes de Justiça é resultado de uma longa construção,
trabalho não de um, mas de muitos. Seria, porém, injustiça não reconhecer a
importância singular de Rui Barbosa nessa construção.
Rui Barbosa é um
dos pais fundadores da República. Foi o maior jurista e o mais importante
advogado brasileiro... Rui Barbosa assumiu a defesa, no final do século XIX, do
juiz Alcides de Mendonça Lima, do Rio Grande do Sul. O juiz, ao presidir
julgamento pelo júri, recusou-se a aplicar lei estadual que eliminava o voto
secreto dos jurados, colocando estes a mercê das pressões políticas locais.
O então
presidente do Rio Grande do Sul, Júlio de Castilhos, contrariado, solicitou que
fosse apurada a responsabilidade do “juiz delinquente e faccioso”. O tribunal
gaúcho culminou por condená-lo por crime de abuso de autoridade.
Rui Barbosa
levou o caso até o Supremo Tribunal Federal, através da Revisão Criminal nº
215. Produziu, então, um dos escritos mais célebres do Direito brasileiro, “O
Jury e a responsabilidade penal dos juízes”, no qual defendeu a independência
dos jurados e dos juízes. Argumentou que um juiz não poderia ser punido por
adotar uma interpretação da lei segundo a sua livre consciência. Com a sua
insuperável retórica, afirmou que a criminalização da interpretação do Direito,
o assim chamado crime de hermenêutica, “fará da toga a mais humilde das
profissões servis”. Argumentou que submeter o julgador à sanção criminal por conta
de suas interpretações representaria a sua submissão “aos interesses dos
poderosos” e substituiria “a consciência pessoal do magistrado, base de toda a
confiança na judicatura”, pelo temor que “dissolve o homem em escravo”.
Ressaltou que não fazia defesa unicamente do juiz processado, mas da própria
independência da magistratura, “alma e nervo da Liberdade”.
O Supremo
Tribunal Federal acolheu o recurso e reformou a condenação, isso ainda nos
primórdios da República, no distante ano de 1897. Desde então sepultada entre
nós a criminalização da hermenêutica, passo fundamental na construção de um
Judiciário independente.
Passado mais de
um século, o Senado Federal debruça-se sobre projeto de lei que, a pretexto de
regular o crime de abuso de autoridade, contém dispositivos que, se aprovados,
terão o efeito prático de criminalizar a interpretação da lei e intimidar a atuação
independente dos juízes.
Causa certa
surpresa o momento da deliberação, quando da divulgação de diversos escândalos
de corrupção envolvendo elevadas autoridades políticas e, portanto,
oportunidade na qual nunca se fez mais necessária a independência da
magistratura, para que esta, baseada apenas na lei e nas provas, possa
determinar, de maneira independente e sem a pressão decorrente de interesses
especiais, as responsabilidades dos envolvidos, separando os culpados dos
inocentes.
Ninguém é
favorável ao abuso de autoridade. Mas é necessário que a lei contenha
salvaguardas expressas para prevenir a punição do juiz — e igualmente de outros
agentes envolvidos na aplicação da lei, policiais e promotores — pelo simples
fato de agir contrariamente aos interesses dos poderosos.
A redação atual
do projeto, de autoria do senador Roberto Requião e que tem o apoio do senador
Renan Calheiros, não contém salvaguardas suficientes. Afirma, por exemplo, que
a interpretação não constituirá crime se for “razoável”, mas ignora que a
condição deixará o juiz submetido às incertezas do processo e às influências
dos poderosos na definição do que vem a ser uma interpretação razoável.
Direito, afinal, não admite certezas matemáticas. [...].
Espera-se que
uma herança de séculos, a construção da independência das Cortes de Justiça,
não seja desprezada por nossos representantes eleitos. Compreende-se a angústia
do momento com a divulgação de tantos casos de corrupção. Mas deve-se confiar
na atuação da Justiça, com todas as suas instâncias, para realizar a devida
depuração. Qualquer condenação criminal depende de prova acima de qualquer
dúvida razoável. A aprovação de lei que, sem salvaguardas, terá o efeito
prático de criminalizar a hermenêutica e de intimidar juízes em nada melhorará
a atuação da Justiça nessa tarefa. Apenas a tornará mais suscetível a interesses
especiais e que, por serem momentâneos, são volúveis, já que - e este é um
alerta importante - os poderosos de hoje não necessariamente serão os de
amanhã.
Rui Barbosa
também foi Senador da República. É o seu busto que domina o Plenário do Senado.
Espera-se que a sua atuação como um dos fundadores da República e em prol da
independência da magistratura inspire nossos representantes eleitos – Leia
na íntegra
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